quarta-feira, 11 de junho de 2014

Bar de Família

Das memória insólitas e noturnas de Lindolfo Blasé.
Os bares que eu frequentava não eram lá grandes coisas, mas lá estava o povo oprimido, e nesses lugares via  algo libertador. O pessoal da alta classe chamava de inferninho, os intelectuais de cult, eu simplesmente chamava de um lugar barato para se beber uma cerveja gelada. Meu amigo para essas indiadas era o Afonso, ele tinha um péssimo gosto para mulheres, e sempre escolhia a mais feia do lugar onde nós nos enfiávamos. Talvez suas escolhas estivessem ligado ao medo da rejeição, ou, como ele sempre pregava, fazia tudo por pura caridade. 
Naquela noite estávamos acompanhados do Jorge, um desses metidos a intelectual de esquerda, mas seus ensaios sobre a noite nos fazia ver o belo onde pouco se via. 
Entramos no primeiro boteco que vimos. Logo na entrada uma senhora beirando os seus 60 anos, gorda, com a roupa cheia de graxa , com seus cabelos loiros, curtos e mal cuidados dava um tom mais pesado àquela gigantesca mulher. Quando chegamos, e vendo que nós nos aproximávamos, foi abrindo logo um sorriso amarelado do cigarro. "Sejam Bem-Vindos, meus jovens, fiquem a vontade! Viu, aqui é um bar de família, todos se amam." Nós sorrimos para ela de forma cordial e entramos. 
O lugar cheirava a mofo e perfume barato e o ar esfumaçado pelo cigarro deixava o ambiente cinzento. Ao fundo um cantor tocava músicas de Reginaldo Rossi, que seguiria por esse caminho com Paulo Sérgio, Altemar Dutra, Odair José, e Waldick Soriano e alguns outros que nem o Jorge, que tanto cultuava esses estilos conhecia. Nessas noites ele deixava Chico Buarque, Zeca Beleiro, Tom Jobim de lado e se esmerava na breguice. Sentamos na mesa logo a esquerda de quem entra. Nos posicionamos estratégicamente de tal forma para que pudéssemos ficar de frente para o público, ao fundo o palco e as nossas costas apenas a parede. A saída ficava bem perto de nós. 
Começamos a beber, havia em torno de umas 30 pessoas no boteco. Os homens seguiam seus padrões de vestimenta, alguns usando camisa polo listrada, outros lisas, camisetas, e alguns tentavam combinar inutilmente camisas polos listradas com calça social, ah e tinha aqueles que usavam uma calça jeans surrada com cinto e fivela gigantesca e camisa florida. As mulheres, em sua maioria usavam roupas com numeração bem abaixo do que seus corpos, não era difícil ver algumas protuberâncias saltando por entre os justos vestidos, outas com costura desfeita em alguma saia curta ou vestido esticado. Uma, em especial, vestia um micro vestido um tomara que caia e um piercing no umbigo inflamado dava um tom do horror. 
Sim, as pessoas não eram bonitas, mas entre tantas uma se sobressaiu, era a mais bonita, seu cabelo castanho claro descia sobre os ombros, seu corpo em forma, e seus peitos saltando quase que para fora do vestido mostravam a beleza exuberante. Ela estava acompanhada de duas amigas e um rapaz com seu bigode ralo (sinceramente não sei porque os homens de hoje usam apenas bigode). Olhamos para ela, ela, por sua vez nos deu atenção. Afonso logo se ouriçou todo. Sim, ele percebera que, naquela situação, ele poderia pegar a mulher mais linda da festa. Ela sorriu para nós, e sua arcada dentária saltou aos nossos olhos, os dois dentes da frente eram cariados, faltava mais uns 4 dentes também da frente, eu e Jorge não tivemos mais coragem para olhar, Afonso por sua vez foi em direção a ela, ele queria ficar com a mais linda da festa. Tinha seu direito. Atravessou o saguão e se aproximou, conversavam e sorriam, os demais amigos conversavam e interagiam com ele. Fazia parte da turma. Eu e Jorge só olhávamos. Encantos para lá, sorrisos para cá e os dois se beijaram, de repente as línguas de cruzaram freneticamente.  Ele entrando naquela boca e tocando sua gengiva sem dentes e ela quase o engolindo, não era uma cena muito linda de se ver, se bem que beleza não era o que estávamos procurando. Ela dava mordidinhas em seu pescoço com seus poucos dentes, na verdade não sabíamos se poderíamos chamar aquilo de mordidinha, estava mais para "gengivinha" (mordidinhas com gengivas). 
Jorge bebia efusivamente e acompanhava cada música que tocava, era incrível o conhecimento dele, principalmente de Odair José, até o tom ele sabia. Eu ficava mais impressionado com ele do que com o cantor que frequentemente errava a nota e desafinava, Jorge não, ele era impecável. Quando uma música começou a tocar "Você me pede na carta que eu desapareça, Que eu nunca mais te procure, pra sempre te esqueça...", quase levantei da mesa e pedi para substituir o cantor por Jorge, quase chorei ao ouvir ele acompanhando a música, algumas pessoas a nossa volta nos olhavam sorrindo, outras rindo de nós. Chamamos a atenção naquele pouco espaço de tempo, nós não, Jorge. Eu prostrado ali só observando tudo aquilo, e rindo, mas rindo muito, era minha melhor situação da noite. Nada sairia dali de melhor. Afonso enamorado e Jorge cantando efusivamente. 
Passava já umas duas horas que estávamos ali quando lá na frente houve um reboliço, ouvimos garrafas se quebrando e de repente uma briga generalizada, nos encostamos mais na parede, Jorge parou de cantar junto com o cantor que levara uma garrafada na cabeça e estava estira do chão. Uma cadeira voou perto de nós e quase me acertou,  Jorge que me puxou a tempo, procuramos Afonso naquele reboliço todo, ele nos procurava com os olhos, pois estava mais perto da briga, veio até nós na primeira estiada do temporal, a turma do deixa disso chegou, mas foi questão de segundos e pau começou novamente, não tinha solução, tínhamos que sair dali o quanto antes. Sorrateiramente saímos e nem olhamos para trás.
Afonso nem procurou sua musa, a integridade física vence sempre quando o caso é de amor. Na saída já quase fora do bar que estava todo em uma quebradeira geral, a gentil senhora que nos recebera naquela noite, bêbada olhou para nós, como se pedindo desculpas saiu dizendo: "família também briga". 
Saímos e naquela noite foi só.  

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